O texto a seguir é da autoria de Jorge Lescano, diretor do grupo "Factótum-Companhia de Teatro".
A fotografia em movimento (cinematografia) criou a ilusão de reprodutividade da vida através da imagem. Esta superstição não diz respeito exclusivamente ao público espectador, e convive com a tendência, cada vez mais agressiva, dos efeitos especiais. Estes, por sua vez, poderão dar origem a outra superstição: a supremacia da ação visual sobre a representação. Nesta, a presença humana nos filmes, tornar-se-ia supérflua.
A imagem "abstrata” (não figurativa) em movimento foi a essência da Arte Cinética dos anos 60. Esta corrente das artes plásticas poderia ser interpretada com o último estágio da Arte Concreta, nome genérico com o qual os artistas definiam seu “ismo”. O conceito objeto substituía as noções de pintura e escultura, unificando-as.
O cinema dito realista, como todo ismo, também tem seus mitos. O mais popular deles, porque permite que qualquer pessoa lhe avalie a qualidade, diz respeito à representação. Desta se espera verossimilhança, mimetismo, não invenção. Tal julgamento antepõe, à artificialidade da arte, a “naturalidade” da vida, sem levar em conta a artificialidade dos meios de sobrevivência nos grandes centros urbanos. Nos filmes realistas, tudo deve parecer como na vida.
Em termos de atuação, fala-se, elogiosamente, de um certo ator do cinema norte-americano que, para construir os personagens que interpreta, procura na vida real os modelos e assume suas profissões. Por que não a cor dos olhos, as nacionalidades ou suas relações familiares?, poderíamos perguntar. Este ator acredita, sem duvidas, que assim viveneia o que o personagem precisa para agir no seu “papel” (ser na vida).
Pressupõe-se que isto seja honestidade artística e despojamento pessoal. Para representar um trompetista, aprendeu a tocar trompete. Um taxista? Trabalhou de motorista de praça (por um tempo determinado e sem depender da “feira” para sobreviver).
Vendo os filmes, o público sabe que ele não é trompetista nem taxista, ainda que ignore seu “laboratório”. Ou, para sermos justos: é um trompetista e um taxista amador.
Para não prejulgar (os elogios da crítica e o sucesso de bilheteria nada têm a ver com o caso), coloquemos em questão o “método” nos seguintes papéis: Édipo, Gulliver, Hitler. Estes personagens fazem parte de contextos diversos: teatro, literatura, história. Limitemo-nos então ao universo cinematográfico.
Um personagem que, embora de origem literária, encontrou sua dimensão “mitológica” no cinema: Tarzan. A grande maioria das pessoas o conhece, ou teve seu primeiro contato com ele através do cinema, são menos os que viram nas estórias em quadrinhos, e menos ainda o número dos que leram os livros nos quais é protagonista.
Édipo remete ao incesto. Evitamos o lugar comum perguntando: como recuperar as experiências de um cego que foi rei e parricida? Mataria um vizinho da mesma idade do seu pai? Vagaria de olhos vendados pelas ruas de Nova Iorque? Isto é possível, mas como ser grego?
Para ser Tarzan, deveria viver na selva ou ler todas as estórias e ver todos os filmes? Qual a verdadeira vida deste personagem de ficção?
Não pequemos de puristas. Admitamos que a experiência (o laboratório) é válida como simulaero e que depois, por um sistema de acomodação, o ator transfira a experiência contemporânea à época e lugar em que se desenrola a ação ficcional. Admitamos também que a honestidade artística lhe permita a aceitar tais papéis.
Se este sistema de transferência é válido e possível, surge a pergunta: por que, então, para interpretar o trompetista, não foi jogar futebol? E para o taxista, não seria igual trabalhar de açougueiro? O público, que conhece, ou ignora, seu laboratório, o vê apenas no seu papel. Esta é a função do ator.
Convenhamos: as “equivalências” (o valor) das profissões são mais “fáceis” que a translação no tempo-espaço. O sistema proposto, tão útil quanto o seu, seria mais rico, pois tocaria trompete como se jogasse futebol e dirigiria o taxi como um açougueiro. Porém, foge à poética do nosso ator.
O resultado da montagem de personagens (jogador-trompetista, taxista-açougueiro) poderia ser interessante, mas o método é inadequado porque inútil. Nesta alternativa é indiferente que toque trompete ou dirija um taxi como jogador, açougueiro, ou ator.
No estágio atual, o cinema realista é subsidiário, suporte ocasional, do teatro e da literatura. Desta conserva a narrativa. Do teatro, a presença visual do tempo-espaço, se bem que lhe falte a presença factual do acontecimento: aqui, agora. Neste sentido, seria apenas “documento” do teatro.
O cinema raramente permite a reinterpretação de um roteiro sem que esta pareça parasitária ou paródica, isto é: metalingüística. Assim, de um modo geral, é a “primeira” versão do filme a que fica e estabelece um padrão de interpretação, tanto para a equipe de realização quanto para o público.
Há ainda a leitura que o ator faz do seu personagem. Se na versão que estamos analisando (a única que existe na realidade factual) é o ator que “incorpora” o personagem, outra leitura poderia nos mostrar a versão do trompetista e do taxista, que se “apossam” do ator para viver. Esta a qualidade do personagem ficcional, ainda quando tenta retratar alguém real. Todo personagem é apenas uma estrutura lingüística.
Agora estamos mais próximos do roteiro original. Este foi criado por um autor que excepcionalmente, ou nunca, exerce ou exerceu a profissão do personagem, ou, em todo caso, não a exerce no momento da escrita. Ainda que o autor conheça por experiência própria as profissões em pauta, ele dará seu testemunho. E este corresponderá às suas características pessoais, diversas das do ator que as representará na tela.
Recuperar o modelo original é impossível. Mesmo que o próprio personagem-autor as represente, as experiências sofrerão, necessariamente, uma adequação ao meduim, que as tornará outras, parasitárias ou paródicas.
Propomos duas alternativas. A primeira: documentar a vida (uma parte da vida) do trompetista ou motorista (foi o que tentou o cinema neo-realista italiano); neste caso se corre o risco de que não surja aventura alguma digna de ser filmada, eliminando de antemão o produto (a obra). A segunda: o ator representa o personagem segundo sua visão artística (imaginativa, não-documental; o “documento” é a pessoa-personagem) sem abandonar sua condição de ator (intérprete, representador). Só assim o ator será o suporte ou sustentáculo, veículo do personagem, sem pretender se confundir com ele. Seu público, que sabe que ele não é trompetista nem taxista, mas ator, poderá aprovar ou desaprovar sua representação.
Agora já não é qualquer pessoa que poderá julgá-lo, mas um público especializado.
Aos que farejem elitismo (!) nesta afirmação, quero lembrar-lhes que não é QUALQUER PESSOA que está capacitada para opinar sobre odontologia ou cervejaria, embora possua dentes e aprecie a cerveja. A realidade factual não é parâmetro do que diz respeito exclusivamente à arte.
Se fosse assim: arte = vida, por que procurar atores para a representação?
Na segunda alternativa que propomos, o cinema estaria mais próximo do teatro experimental, o que talvez não seja sua função ou intenção. Afastando-se da ilusão de realidade, o cinema “realista” ficaria mais perto da realidade artística. E deixaria de ser “realista”. Nesta perspectiva, não é improvável que a parafernália dos efeitos especiais esteja indo ao encontro da essência do cinema e acabe descobrindo, ou criando, esta essência.